Titular do Núcleo de Inovação e Empreendedorismo da Fundação Dom Cabral (FDC), uma das mais reputadas escolas de negócios do Brasil, o engenheiro mecânico Carlos Arruda, doutor em Administração Internacional pela Universidade de Bradford (Inglaterra), foi portador de más notícias em sua conferência na Expogestão. No mesmo dia, coincidentemente, a FDC e o International Institute for Management Development (IMD) anunciavam os resultados da versão 2014 do Índice de Competiti- vidade Mundial. A conclusão é desalentadora: pelo quarto ano seguido, o Brasil desce alguns degraus no ranking internacional, ocupando o 54º lugar, dentre os 60 países classificados nesse indicador que mescla fatores econômicos e regulatórios com percepções do empresariado para definir patamares de competitividade. “O Brasil está piorando em relação ao próprio Brasil”, lamentou o professor. Nesta entrevista à Revista 21, ele alerta para a emergência de algumas reformas, mas rejeita o “mito” de que o setor público brasileiro é ineficiente por natureza e, mesmo ante o quadro geral traçado pela pesquisa, defende uma atitude empreendedora para substituir o negativismo por uma “agenda construtiva”.
Os resultados da pesquisa surpreendem? Em que aspectos?
Sim, mas não tanto. É o que eu chamo de “fenômeno Argentina”. O que se observou, na Argentina, na Turquia, na Grécia, é que, se os fatores sistêmicos – desempenho da economia e eficiência de governo – não avançam, eles tendem a gerar um retrocesso também nos demais. O que se tem são dois indicadores em declínio. Mesmo que os outros pontos relacionados à competitividade (infraestrutura e eficiência empresarial) estejam sustentando, há tendência de impacto negativo, porque envolvem o próprio modelo, à medida que a atividade empresarial é naturalmente dependente do contexto em que opera. Se não se faz reformas na legislação, não aumenta a eficiência do processo administrativo público e os fatores econômicos (taxa de juros etc.) não melhoram, isso se reflete na atividade empresarial. Motivação para investir? Com a taxa de juros do jeito que está, com o spread bancário do jeito que está, minha motivação é baixa. Se o custo do trabalho aqui representa 110% do salário, enquanto na China essa proporção é de 30% e no México, 50%, não consigo fazer concorrência com os produtores chineses e mexicanos, por exemplo. Se você olhar, hoje, a linha branca no Brasil começa a ser toda importada, da China ou do México. Temos uma pesquisa em que fornos, coisas pequenas, em Casas Bahia ou Magazine Luiza, ou são chineses ou são mexicanos. Praticamente não se encontra mais nada brasileiro. O que é “brasileiro”, de uma empresa brasileira chamada Suggar, ela produz na China. Não dá para competir. Voltando à pesquisa, o que não esperávamos era o tamanho da queda. Até então, o Brasil vinha caindo gradualmente, uma ou duas posições, mas sustentando a distância em relação aos países mais competitivos. Neste ano, a queda foi mais abrupta.
E o que foi que pegou?
Por um lado, a queda significativa do comércio internacional na formação do PIB brasileiro. Mas há mais. O relatório da pesquisa se baseia em dados estatísticos e percepções de futuro. E a motivação decaiu muito. Não no geral, mas na perspectiva de crescimento dos negócios. Esse pessimismo de 2015 está tomando conta da agenda das pessoas, e isso é ruim. Já vimos algo assim na Colômbia: lá, houve um momento em que tudo vinha dando certo, o governo agindo corretamente, mas a comunidade empresarial estava pessimista e a economia não conseguia crescer. O Brasil vive isso agora. Então, o indicador de eficiência empresarial teve quedas expressivas nos indica- dores de percepção, mais até do que nos estatísticos.
E o que provocou essa queda?
A falta de melhorias na infraestrutura, que continua ruim. O aumento da preocupação com a questão da energia, que é uma agenda nova – o Brasil sempre esteve entre os piores do mundo no custo da energia para a indústria e, neste ano, somou à questão do custo a perspectiva de disponibilidade de energia no futuro. Também as questões regulatórias (não houve melhorias no sistema trabalhista, tributário etc.), e, para completar, a burocracia continua operando com o mesmo grau de ineficiência, o que gera perda de motivação. O fato de não melhorar em infraestrutura traz perdas de produtividade – porque transfere o problema, como herança. Tome-se o exemplo do setor agrícola: tem altos ganhos de produtividade, processos, produção mais eficiente, equipamentos mais eficientes, sementes mais produtivas etc., mas, na hora de transportar essa soja para o porto, absorve toda a ineficiência do sistema de logística, quando chega ao porto absorve a ineficiência do sistema portuário etc. Daí que a somatória é baixa produtividade. E foi isso que ocorreu neste ano.
O Brasil é pouco competitivo, e a cada ano parece que o cenário vem se agravando. Como é que se explica que o país continue atrativo para investidores internacionais?
É fato: são 16 posições que perdemos em quatro anos. Um absurdo. A nossa foi a maior queda, logo atrás veio a Índia. O que explica são 202 milhões de habitantes. Esse é o ponto positivo do Brasil, que, sim, permanece atrativo. O Brasil não tem só coisa ruim, felizmente. Nível de desemprego muito baixo, uma sociedade orientada ao consumo… Há uma “fórmula mágica” na economia doméstica que é perfeita para sustentar as oportunidades de atração de investimentos e crescimento da economia. O problema é que ela é limitada, já chegou ao limite e não consegue mais garantir sozinha o crescimento econômico se não se somar à outra dimensão, que é a economia internacional, internacionalização de empresas brasileiras, ganhando não só na venda de produtos mas no lucro, ganhando capital sobre o que é gerado lá fora. E, nisso, o Brasil está muito fraco, muito pobre.
A atuação do governo federal não vem favorecendo possíveis mudanças nesse cenário…
A agenda do governo é doméstica. Tem uma agenda muito boa de inclusão social, associada com a geração de oportunidades de emprego. Mas um governo precisa de múltiplas agendas. Um ponto fraco é a política externa, relações internacionais, exportação etc. Onde está essa agenda? Não se vê que as relações exteriores estejam na pauta de prioridades. Tem a Apex, que é um órgão do Sebrae mantido por custos de impostos, parte dos impostos pagos na folha de pagamento vai para o sistema Sebrae e dali para a Apex. Não sai nada do governo. Passa pelo governo, mas somos nós que estamos pagando. A Apex é a única agência brasileira de fato orientada para apoiar pequenos e micro exportadores.
No Brasil, comércio internacional é ficção, a pauta de exportações é concentrada em uns poucos grandes players, não vemos um Executivo preocupado com isso. Não existe no Brasil uma política de comércio internacional agressiva, compatível com a política de redução de IPI para aumento do consumo de automóveis. As políticas brasileiras são desequilibradas, totalmente orientadas para a economia doméstica. Isso gera outras distorções. A cadeia do automóvel é toda para o mercado doméstico, o Brasil praticamente não exporta automóveis. Por quê? Não existe uma Hyundai brasileira, uma Kia brasileira. Um produto intermediário de primeira linha. Equivalente ao que há na Índia, com a Tata, uma empresa nacional orientada ao mercado. A agenda do setor automotivo é de multinacionais, e esta é de maximizar o retorno sobre o capital investido no mercado brasileiro.
OS FATORES QUE AFETAM A COMPETITIVIDADE
O Índice de Competitividade Mundial analisa dados de 60 países, anualmente, desde 2010. Os dados, baseados em desempenho econômico, eficiência do governo, eficiência empresarial e infraestrutura, são coletados em pesquisas e estatísticas de organismos internacionais (FMI, Banco Mundial, OCDE, OIT), ins tituições privadas (CB Richard Ellis, Mercer HR Consulting, PriceWaterhouseCoopers etc.) e fontes nacionais. A partir dessa análise, é criado um ranking, representado no gráfico abaixo. Cada linha representa um dos 58 países do ranking – Latívia e Emirados Arábes Unidos não faziam parte do estudo em 2010. O Brasil ocupava a 38a posição em 2010. Caiu 16 posições desde então. O pior desempenho do período foi em eficiência empresarial, enquanto infraestrutura se manteve estável, num nível baixo. Em eficiência governamental, o Brasil era próximo à Islândia. Em 2014, os islandeses abriram larga margem.
Não dá para ser muito otimista com relação ao aumento de exportações pelo Brasil, diante do câmbio desfavorável e desse cenário todo…
Afora que as condições globais estão muito difíceis. Com a redução da importação provocada pelas crises na Europa e nos Estados Unidos, principalmente Europa, aqueles fornecedores ficaram se perguntando “para onde eu vou?”. A resposta foi o mercado latino-americano. Nós estamos sendo deslocados. Se olharmos a pauta de importação de Colômbia, Peru, Chile, Argentina, vamos ver que em muita coisa o Brasil está sendo deslocado, substituído por chineses, coreanos, até vietnamitas, que estão com uma pauta mais compatível aos interesses desse mercado.
O sr. falou sobre estes novos números de competitividade em sua palestra na Expogestão. Qual a reação da plateia quando ouve esse tipo de análise? Não dá uma frustração generalizada?
Dá um desespero. Mas o empreen- dedor mesmo não fica desanimado. Ele pensa como pode superar essas deficiências. Como pode transfor- mar essa realidade. Temos que sair da agenda negativa para uma agen- da construtiva. É o apelo que eu faço. Mas, claro, a primeira reação das pessoas é de frustração mesmo.
No contexto de campanha presidencial, esse tipo de tema vai ocupar maior destaque nas plataformas dos candidatos? O sr. espera que eles estejam mais atentos a essas questões que configuram os atrasos do Brasil?
Espero que sim. E espero que eles não vejam esse como um tema político. É um tema administrativo, como venho chamando atenção. A melhoria da competitividade do Brasil não passa pela agenda política, e sim pela administrativa – é ação, não é discussão. Temos compromissos a realizar com investimentos em infraestrutura que estão sendo adiados ou avançando de maneira lenta. Veja o PAC: não implementamos 60% do previsto. Espero que a agenda de discussão seja de pró-atividade, de assertividade. O Brasil precisa dessas mudanças, de melhoria na qualidade da educação, de infraestrutura, do sistema regulatório, independentemente de quem estiver na liderança do país. E isso chegou a um ponto de urgência.
Como os movimentos sociais que tomaram as ruas do país desde o ano passado afetam esse cenário? Contribuem ou dificultam?
Difícil responder, mas vejo que são de curtíssimo prazo. São mais de reação do que de proposição. Não estão propondo nada em termos de transformar o país. Expressam apenas uma insatisfação. Acho que dificultam, à medida que estão um tanto desordenados, sem uma pauta. Se você voltar em outros tempos, dos caras-pintadas, havia uma pauta, de acabar com a corrupção etc. Quando conseguiram o que queriam, pararam. Hoje, sem uma pauta, corre-se o risco de se promover manifestação pela manifestação, o que é um fenômeno social interessante. Tem um autor já falecido que fez um estudo sobre isso, esses movimentos de “manada” das populações. Ele mostrava que chega um determinado ponto em que o próprio movimento alimenta o movimento, não tem mais causa. Poderia dizer que isso aconteceu no primeiro movimento no ano passado, quando o fruto dos protestos na Turquia detonou as manifestações no Brasil. Até poderia haver muitos motivos para protesto, mas o que inspirou mesmo foram os movimentos na Turquia. O lado negativo é esse, da retroalimentação. Aí se perde o controle.
Retomando a questão da competitividade, existe um discurso recorrente no Brasil que tudo o que vem do setor público é ineficiente e que o setor privado é campeão de excelência por definição. Qual a origem disso?
É uma falácia, e isso foi provocado por estudiosos sérios, o próprio Keynes falava que o setor privado tem a força de um leão e que o setor público é um paquiderme. Estudos mais modernos mostram que não é assim. A questão está na eficiência em si. Empresas ineficientes são piores que um setor público ineficiente, porque elas morrem, ao contrário do setor público. O desafio é preservar, buscar a eficiência. Lógico, se você tem uma atividade produtiva que gera resultado, gera lucro, um serviço, talvez ele seja melhor localizado no setor privado porque ali você tem cobrança, premiação, metas e consequência. No setor público, não, há um nível menor de reconhecimento e responsabilidade. Isso preserva um pouco o ambiente menos adequado às transformações. Porque, se uma empresa não está funcionando de maneira adequada, ela quebra e é substituída por outra. Então esse processo na- tural do sistema empresarial gera uma ambiente mais favorável. Mas tem atividades como uma agenda de desenvolvimento do país que são de ordem pública. Tenho dúvidas se a segurança e outras afins deveriam ser privadas. Agora serviço, estradas, telefonia, comunicação, não há dúvidas de que são atividades caracteristicamente privadas.
Quanto a referências positivas do setor público, o sr. já destacou o caso da Receita Federal. Mais algum exemplo?
Há pouco tempo, eu diria o BNDES, mas caiu na minha lista. Em alguns momentos, vi o BNDES buscando ser tão eficiente quanto um banco privado. Mas agências públicas com a força de um BNDES não estão isentas de interesses políticos. Aí, a agenda política interfere nas questões administrativas. A vantagem da Receita Federal é que ela não depende de agenda política. Todo mundo concorda que tem que ser eficiente. O nível de tributação e outros aspectos não são problemas dela, e sim do Executivo. Talvez outras agências – cito a Embrapa, que é semipública – que têm autonomia no seu processo de decisão e que não dependem de jogo político possam ser tão eficientes quanto a Receita Federal.
O sr. mencionou o nome do empresário gaúcho Jorge Gerdau, que há anos levanta a bandeira de reproduzir, no setor público, algumas práticas e experiências de empresas privadas. Por que é tão difícil que esse tipo de proposição sensibilize e vá adiante?
Por causa da questão política. Ele é um homem que pensa racionalmente, e a cabeça política não é racional, tem jogo de interesses, jogo de poder. Pelo que sei, o modelo de eficiência administrativa que ele implantou, não só na indústria Gerdau, mas na Santa Casa de Porto Alegre e em alguns outros órgãos, exige isso, independência do processo de decisão, para gerar o resultado proposto para aquela atividade. No sistema público, tem a questão política, tem jogo de influências muito forte. Se a agenda não está integrada, há dificuldades naturais. Em uma empresa, os acionistas buscam maximizar o retorno, valorizar os ativos, e todo mundo está alinhado em torno disso – na atividade pública, isso não é verdade, uns buscam favorecer uma camada ou uma região em detrimento de outra. O que atrapalha um processo racional de desenvolvimento da capacidade de gestão, que é o que vejo o Gerdau pregando, é o fato de estarmos em um contexto muito mais politizado do que o empresarial, que não opera no mesmo diapasão.
Se esse tipo de iniciativa fosse adiante, todas as partes sairiam ganhando, não?
As chances são de que sim. Mas nos lembremos de que em jogo político nem “todo mundo” sai ganhando. Sai ganhando quem pensa assim.
Que papel vêm tendo escolas de negócios como a Fundação Dom Cabral no sentido de disseminar esse tipo de preocupação no meio empresarial?
Primeiro, de melhorar a atividade empresarial no Brasil. Dos anos 1970 para cá, o Brasil deu saltos fenomenais, com sistemas de qualidade e uma gestão mais profissional. Escolas de negócios e serviços de apoio a empresas, de maneira geral, além de associações empresariais, vêm desempenhando esse papel de ganhar eficiência e produtividade na gestão. O professor Michael Porter, que é um dos mentores desse tipo de análise, em um determinado momento chegou a propor que se invertesse a lógica, e, já que o ambiente é improdutivo e as empresas são produtivas, transformássemos o ambiente. Só que isso não funciona. A proposta de se usar a qualidade do setor privado para aprimorar o setor público, no Brasil, na Argentina, em outros lugares, não funcionou. Em alguns países, sim, houve um processo interessante. A Colômbia adotou esse modelo, o Chile… O atual presidente da Colômbia é um executivo, o ex-presidente do Chile foi um empresário. É mais difícil fazer isso em grandes economias, com um ambiente de grandes contradições e jogo político, como o Brasil. Precisaria, talvez, de uma reforma política. O que nós não estamos fazendo, em escolas como a FDC, e faço o mea culpa disso, é formar líderes públicos. Formamos líderes empresariais. É difícil chegarmos lá. Formar líderes para a sociedade é, talvez, o grande desafio das es- colas de negócios hoje.
Fonte: Revista 21